Cultura humanizada no meio tech Estratégias para pessoas e organizações construírem ambientes mais saudáveis
André Guimarães SakataPrefácio
O livro que você tem em mãos começa com um anúncio muito dito, mas pouco ouvido: estamos esgotados! Sim, eu já estive. Talvez você também já tenha estado, ou pode até estar neste exato momento. A humanidade está esgotada. Em especial, líderes e desenvolvedores em projetos de software têm sua saúde mental deteriorada por décadas sem sequer perceberem o que está acontecendo à sua volta.
A primeira manifestação desse esgotamento surgiu ainda na década de 60. Foi em uma conferência promovida pela OTAN em 1968. Ali, os engenheiros que presenciavam o início da nossa era digital já se preocupavam com dificuldades crônicas para o atingimento de prazos e para o desenvolvimento de funcionalidades em projetos, cujo grau de complexidade aumentava progressivamente. Já naquela época, as dificuldades de estimar e planejar o esforço e o trabalho envolvidos para conclusão de um projeto de tecnologia eram grandes, o que resultou em pressão de entrega, horas extras e insatisfação generalizada. Nas décadas seguintes, intensificou-se a constatação de que conduzir um projeto de software não era como gerir um projeto comum.
À medida que os computadores se tornavam exponencialmente mais poderosos e que se ampliava a infraestrutura de software e comunicação, mais potencialidades de uso e de aplicação eram disponibilizadas para o público em geral. Para as empresas, essas potencialidades se manifestavam em termos de aumento de eficiência, de ampliação e construção de novos negócios e na necessidade de mais investimentos. Quanto mais investimentos, mais projetos, mais pessoas envolvidas e dificuldades para o sucesso.
Apesar de imensa, essa evolução técnica não foi acompanhada por uma gestão eficaz dos projetos na ponta final das empresas. Usamos o que já tínhamos à mão, ou seja, conceitos e técnicas de gestão genéricas que desconsideravam as características intrínsecas do desenvolvimento de software. Isso ampliou o problema da ineficácia e, principalmente, do impacto negativo na sustentabilidade e saúde mental dos profissionais envolvidos. A "Crise do Software", como ficou conhecido esse período da nossa indústria, ajudou a estabelecer uma cultura de heroísmo, na qual somente o profissional que se dedicasse acima da normalidade era capaz de vencer projetos malsucedidos.
Na virada dos anos 2000, desenvolvedores em várias partes do mundo, cientes e experienciadores frustrados dessas dificuldades, começaram a reconhecer as características técnicas e sociais que aumentavam a probabilidade de bons resultados em projetos de software. Não foi nenhuma surpresa constatar que o foco na forma como as pessoas envolvidas se relacionavam e na sustentabilidade técnica dos processos tornou-se seus princípios orientadores.
A atenção passou agora a se concentrar nas condições técnicas e sociais que traziam mais eficácia para os projetos, ou seja, que entregavam a coisa certa na hora certa. Em vez de pesados processos que tentavam controlar cada atividade para vencer o medo e diminuir o risco, o jogo nesse momento passou a invocar o desejo da vitória em vez do medo da derrota. Com isso, aceitamos incorrer em novos riscos – e isso fez toda a diferença.
A natureza criativa e colaborativa do desenvolvimento de produtos começou a ser resgatada, assim como uma atenção especial ao valor que precisava ser agregado. Um cuidado maior passou a ser dado ao relacionamento colaborativo entre as pessoas envolvidas. Excelência técnica passou a ser ao mesmo tempo requerida e desejada para que os produtos crescessem de forma sustentável. Os cuidados com o humano e com o técnico se uniram para reposicionar os modelos de gestão que eram usados até então. Isso foi, e ainda continua sendo, a essência do movimento Ágil na indústria de software.
É orientado por esses princípios que este livro articula as soluções disponíveis no momento para o problema da questão da saúde mental e da sustentabilidade de processos no mundo contemporâneo. Embora tenhamos virado o barco para a direção certa, e apesar de muitos dos problemas iniciais terem sido endereçados, a condição atual de profissionais em um projeto de software ainda deixa a desejar.
Cada vez mais conhecemos empresas com culturas que colocam essa preocupação no centro das atenções. Mas o jogo mais comum ainda continua sendo disfuncional: trabalho empurrado; prazos arbitrários; incompreensão do valor que precisa ser agregado; relações tóxicas. O trabalho continua se expandindo para absorver todas as horas das nossas vidas, deixando de lado a criatividade e o significado que nos levaria a apreciá-lo.
Essa cultura nos faz acreditar, ou aceitar, que o resultado das nossas ações vem a partir do volume de trabalho que realizamos, do medo, da competição, do controle ou da eficiência para se manter vários pratos girando simultaneamente. Muitas vezes, senão sempre, está aí a origem de tantos ambientes de trabalho disfuncionais.
O problema é que essas condições às vezes “dão resultado”, especialmente quando incêndios precisam ser apagados. Esse é um grande problema, porque o suposto "bom resultado" no curto prazo esconde o real impacto de se manter tal comportamento no longo prazo. O choque de realidade vai em algum momento se manifestar na nossa vida pessoal – na forma de sofrimento, divórcios, distanciamento dos filhos, doenças físicas e psicológicas.
Além disso, há o efeito do próprio estilo de condicionamento que imputamos a nós mesmos. Começamos a formar hábitos difíceis de serem desconstruídos, como empurrar trabalho para horas extras, fins de semana ou feriados; não saber dizer não; não saber selecionar a coisa certa a se fazer a cada momento; ou não saber separar o essencial do prescindível. A criatividade, indispensável para se fazer melhor, é desfavorecida. O jogo passa a ser apenas “fazer mais”; só a eficiência passa a ter valor. O jogo se torna maquinal e gerador de sofrimento.
Quando penetram na organização, esses hábitos e comportamentos que desviam a orientação humana para o plano da eficiência assumem novos contornos. Vemos o mesmo padrão se reconfigurar na organização: por meio da realização de planejamentos longos e detalhados; do "Big Design Up Front"; do excesso de trabalho em progresso; das tentativas elaboradas de "paralelizar" projetos e outros itens de trabalho; das medições de performance e produtividade individual; do desenvolvimento de soluções para problemas que não existem ou que não são importantes ou prioritários; das relações tóxicas. Nesse ímpeto por "fazer mais", indivíduos e organizações alimentam-se uns aos outros, produzindo uma espiral autodestrutiva no médio e longo prazo.
O problema não é simples e este livro oferece três importantes perspectivas para nos ajudar a endereçar essa questão no dia a dia dos nossos projetos. Uma perspectiva técnica, que diz respeito à forma como os times se formam e como eles agem; uma perspectiva cultural, voltada para a empresa e as crenças que sustentam sua forma de operar; e, claro, uma perspectiva individual, relativa ao autoconhecimento da pessoa participante no esforço coletivo, aquela para o qual todo o sofrimento se volta.
Quando esse quadro mais abrangente é bem compreendido, uma virada se torna possível de acontecer: tanto a saúde mental quanto a sustentabilidade do nosso processo de trabalho se tornam muito mais premissas a serem seguidas do que um alvo a ser buscado.
A experiência no trabalho passa a vir primeiro, deixando que o resultado emerja a partir de um berço mais acolhedor e construtivo. Será que estamos preparados para dar esse passo? Cada vez mais. O texto conciso, prático e abrangente do André Sakata vai certamente ajudar o leitor que já está pronto progredir nessa direção.
Alisson Vale
Agosto, 2022
Introdução
Estamos esgotados
Desenvolver software é incrível. Quando fizemos nosso primeiro "hello world", sentimos um potencial enorme. Percebemos que somos capazes de construir coisas, de logicamente organizar ideias e, em pouco tempo, produzir algo novo — e isso é muito prazeroso. Além disso, ver esses produtos serem distribuídos de forma instantânea e transformarem o comportamento das pessoas é viciante.
Mas, de alguma forma, esse cenário se torna um inferno.
De alguma forma, toda essa sensação de potencial e liberdade que sentimos quando fizemos nosso primeiro software funcionar se transforma em sofrimento. Quando chegamos ao mundo real, nós nos deparamos com projetos diferentes do que costumávamos fazer. Esses projetos possuem nuances. Eles parecem estar claros em um momento e ficam nebulosos no momento seguinte. Ficamos ansiosos com suas incertezas e trabalhamos arduamente para fazer progresso, mas parece que nada é suficiente. Tentamos inúmeras vezes e não encontramos o jeito certo de implementá-los. Sentimos vontade de refazer tudo, de começar do zero, mas isso não é possível.
Por fim, sentimos culpa por não estarmos preparados o suficiente.
Esse trabalho é uma humilde tentativa de colocar luz sobre vários desafios que enfrentamos como pessoas inseridas na indústria de software. Gostaria de articular uma compreensão mais ampla sobre a natureza do nosso trabalho, no intuito de que nós e nossos times mantenhamos uma boa saúde mental dentro de cultura empresarial sustentável.
***
A primeira vez que eu comecei a pensar com mais profundidade sobre sustentabilidade humana em desenvolvimento de software foi quando eu assisti a uma palestra na RubyConf de 2019, em São Paulo. Em uma das trilhas paralelas, havia uma apresentação sobre saúde mental e fiquei curioso. A apresentação era basicamente um relato sobre como um desenvolvedor passou por um burnout, seguido de uma crise de depressão.
Eu não consigo mais me lembrar dos detalhes da história, mas eu me lembro como me senti. Lembro que fiquei profundamente tocado porque conseguia entender claramente como um problema levou a outro e como a relação com o trabalho arruinou, por um momento, sua própria vida. Eu podia ver que aquilo poderia ter acontecido comigo.
Aquele não era apenas um acontecimento isolado nem específico do mercado de desenvolvimento de software. Para começar, vamos falar da dimensão econômica: estima-se que o estresse ocupacional custe mais de 300 bilhões de dólares nos Estados Unidos em absenteísmo, baixa performance e custos com saúde. Segundo publicação do National Institute for Occupational Safety and Health, problemas de trabalho possuem uma correlação mais forte com queixas de saúde do que qualquer outro fator estressor, inclusive problemas financeiros e familiares.
Apesar de os números agregados serem alarmantes, o que realmente choca são as histórias particulares. Em 2017, Joseph Thomas, engenheiro de sofware da Uber, deixou sua esposa e dois filhos ao se suicidar. Apesar do alto salário pago pela empresa, sua esposa Zecole viu sua vida desmoronar com a cultura agressiva e tóxica do novo emprego. Thomas era um profissional competente, recusou um emprego na Apple e deixou um cargo no LinkedIn para trabalhar na Uber e, apesar disso, teve sua autoestima arruinada por seus superiores. Ele não acreditava mais em si mesmo; chegou a receber a recomendação de sua terapeuta para deixar a companhia, mas não conseguiu fazer isso a tempo.
Quando eu ingressei no mercado de trabalho, lembro de ter ouvido a história de um gerente de projetos que era excepcional. Era uma pessoa jovem ganhando um salário alto. Quando atingia metas, ganhava bônus que incluíam viagens ao exterior. Ao mesmo tempo, ele engordara mais de 20 quilos em um ano e já começava a ter a saúde comprometida. Apesar de tudo, essas consequências eram vistas como uma medalha de honra. Esse seria o preço a pagar caso queiramos obter sucesso.
O estresse crônico oriundo do trabalho leva a problemas em todas as esferas da vida. Os relacionamentos vão se arruinar porque é impossível cultivar qualquer relação de qualidade quando não há mais nenhuma energia no final do dia. Os hobbies que costumávamos ter, cuja atividade proporcionava o prazer em si e não em um resultado extrínsico, param de fazer sentido. O propósito que tínhamos quando começamos a trabalhar começa a ficar mais distante e cinzento. Por fim, nossa saúde física começa a se deteriorar quando nos afastamos de bons hábitos e começamos a adotar vícios nocivos.
A importância da saúde mental para os indivíduos parece óbvia. Pessoas literalmente morrem por seus salários.
No entanto, quando pensamos do ponto de vista das empresas, podemos imaginar que há um conflito. Se as pessoas estão esgotadas no trabalho, ao menos elas devem estar produzindo mais e gerando lucro. Mas não estão. O custo desse estresse e esgotamento não é recompensado com mais resultados, porque o trabalho criativo não pode ser exprimido com força bruta. O ambiente tóxico para os indivíduos resulta em baixo engajamento e rotatividade, e reduz a produtividade das empresas.
Isso nem sempre acontece apenas por sobrecarga de demandas. A poluição social, que surge de relações tóxicas, leva ao cinismo e consome a energia das pessoas com o desgaste social. Dentro do desenvolvimento de software, onde existe uma forte interdependência entre os trabalhadores, como entregar algo se você não suporta mais a convivência?
Independente dos resultados econômicos, deveríamos pensar sobre a sustentabilidade humana de nossas organizações porque essa é, simplesmente, a coisa certa a se fazer. É uma questão de ética e moral. As empresas deveriam não apenas permitir que seus funcionários tenham tempo de qualidade após o expediente, mas incentivar que isso aconteça, por nenhum outro resultado além disso.
***
Com isso, as reflexões e propostas deste livro serão divididas em três partes:
- O time e suas formas de trabalhar;
- A empresa e sua cultura;
- O indivíduo e suas crenças.
Na primeira parte, revisitaremos vários conceitos bem estabelecidos nas últimas décadas em gestão de projetos de software, sob uma perspectiva centrada nas necessidades humanas atendidas por essas metodologias. Além da busca por eficiência e eficácia, de que forma o movimento Ágil contemplou as necessidades humanas por trás do seu manifesto e o que pode estar passando despercebido? Nessa parte, estaremos no escopo das equipes e como elas trabalham.
Na segunda parte, faremos reflexões voltadas as crenças que estão presentes nas organizações como um todo. Pensaremos sobre como essas crenças podem ser nocivas aos objetivos da companhia e da sustentabilidade humana de seu pessoal e o que podemos fazer a respeito disso.
Na última parte, entraremos no campo individual. Apesar dos pontos de vista técnicos e culturais da primeira e segunda parte, boa parcela de nosso sofrimento tem origem em nós mesmos. Nossos padrões de pensamentos possuem grande influência sobre nossas ações e suas consequências. Falaremos sobre o burnout sob uma perspectiva individual e apresentaremos abordagens para gestão de energia. Embora muitas vezes nos encontremos em ambientes negativos, podemos ser agentes de transformação a partir de nós mesmos.
É evidente que cada caso de burnout é singular. Ainda que sejam apresentadas dicas práticas sobre como lidar com algumas situações, este não é um manual de como resolver o burnout dentro do desenvolvimento de software.
Entretanto, este livro é para todas as pessoas que acreditam que é nosso dever criar um ambiente em que pessoas possam trabalhar por anos sem necessariamente enfrentar doenças resultantes de estilos desumanizados de gestão — e que podemos fazer isso ao repaginar nossas metodologias e crenças pessoais.
Buscaremos compreender melhor a natureza do nosso trabalho para recuperar (ou não perder) nosso prazer em desenvolver software e colocar nossa atividade profissional como fator construtor da nossa saúde, ao invés de origem de doenças.
Sumário
- Parte 1 — O TIME E SUAS FORMAS DE TRABALHAR
- 1 O que faz a pessoa desenvolvedora de software?
- 1.1 As implicações do "trabalho do conhecimento"
- 2 Estilos de gestão e suas consequências
- 2.1 Uma startup lutando para sobreviver
- 2.2 As pessoas lutando para sobreviver em uma startup
- 3 Segurança para assumir riscos e estar vulnerável
- 3.1 Quão nocivo é o medo?
- 3.2 Segurança do grupo e segurança individual
- 3.3 Estratégias para construção de segurança psicológica
- 4 Desenvolvimento centrado no ser humano
- 4.1 Revisitando valores de Extreme Programming
- 4.2 Efeito Zeigarnik e a importância do controle sobre trabalho em progresso
- 4.3 A carga cognitiva derivada da arquitetura do software
- Parte 2 - A EMPRESA E SUA CULTURA
- 5 Por que o trabalho está uma loucura?
- 5.1 Como mudamos nossa relação com o trabalho ao longo dos tempos?
- 5.2 Longas jornadas
- 5.3 Protegendo a atenção
- 6 Conversas difíceis
- 6.1 Por que são difíceis?
- 6.2 A abordagem da Comunicação Não Violenta
- 6.3 Como dar bons feedbacks?
- 7 Lidando com falhas
- 7.1 Um olhar sistêmico para falhas
- 7.2 A influência do negócio sobre como lidamos com falhas
- 7.3 Três tipos de falhas
- Parte 3 - O INDIVÍDUO E SUAS CRENÇAS
- 8 Padrões de pensamentos
- 8.1 Síndrome de burnout
- 8.2 A dinâmica da autoafirmação e autoexploração
- 8.3 Perfeccionismo
- 8.4 Conversas com nós mesmos
- 8.5 Avaliando o que é essencial
- 9 Gestão de conhecimento, tempo e energia
- 9.1 Preparando-se para uma jornada de aprendizado
- 9.2 Gerenciando tempo e energia
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 10 Assumindo nossa responsabilidade
- 11 Construindo um plano de ação
- 11.1 Avaliando nossa maneira de trabalhar
- 11.2 Avaliando a cultura da empresa
- 11.3 Avaliando suas próprias crenças e gestão individual
Dados do produto
- Número de páginas:
- 187
- ISBN:
- 978-85-5519-323-1
- Data publicação:
- 01/2023